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Acontece que eu sou cearense, mas acontece que ela não é



— Mas Kare, nessas bolsas não vai caber nem a nossa necessaire com xampu, hidratante...


— Cabe, sim, Fabi. A gente divide. Porque vê, roupa de praia é tudo pequena e ocupa pouco espaço.


— Eu ainda acho que não vai caber.


— Vai, mulher. Além do que, são duas bolsas pequenas. Assim, a gente divide o peso.


— E eu trouxe essa mala aqui pra quê?


— Ah não, a mala tem outra função, né? Eu te pedi pra trazer pra levar outras coisas, mas pra São Paulo! Tu sabe.


— Hummm...


Essa era a conversa entre mim e Fabi, para decidir como levaríamos nossa bagagem para Icaraizinho de Amontada. Diante das bolsas sentadas na cama, nós discutíamos caminhando pra lá e pra cá, empilhando roupas e outros objetos, ao lado delas. Não era, exatamente, uma discussão. Jogávamos, sobre a cama, argumentos na defesa do que a cada uma parecia razoável, como jogadoras de baralho.


— Ha ha ha ha. Viu? Não vai caber essa necessaire.


— Tá bom, vai. Vamos levar sua mala. Realmente. Nem sempre a gente precisa escolher o mínimo, né? Levamos a mala marrom. 


Eu não joguei nenhum argumento decisivo, que pudesse ser forte a ponto de convencê-la. Isso é verdade. Mas algum bichinho dentro de mim tentava  me dizer que essa opção não era a melhor.


Afinal, íamos viajar de ônibus até Amontada - até aí tudo bem - e de lá pegar um "transporte", segundo o moço da agência de passagens, que nos levaria até Icaraizinho.


Se não tinha ônibus direto? Tinha sim. Mas acontece que era um por dia e saída de Fortaleza só às 14h. Aí perderíamos a primeira diária todinha.


Meu irmão nos ofereceu o carro, tia Fátima também. O universo tentava nos ajudar. Não aceitamos. Um pouco pela formalidade paulistana e outro pouco porque tudo parecia ajeitado. 


E lá estávamos nós, segunda-feira bem cedinho, a caminho da rodoviária com a bendita mala marrom da Tommy Hilfiger. No saguão de espera, a mala já parecia um peixe fora d'água.


Os viajantes carregavam pequenas sacolas de fios plásticos tecido em trama quadriculada, bolsas de toda natureza e até sacos, desses de 60 kg, serviam de meio para transportar tralhas. Só não vi malas.


Quer dizer, vi sim. Verdaaade verdadeira, o problema não era estarmos fazendo uma viagem levando a bagagem numa mala. Obvio que não. O que certamente me fazia estranhar a mala naquela situação era que ela não combinava com a viagem. Pronto. Era isso.


A mala não combinava com a viagem que estávamos prestes a empreender. Mas acontece que isso eu só soube quase chegando lá. Deixamos a bendita no bagageiro e tudo lindo.


Conversamos sobre tudo na estrada para Amontada. Até dormi um pouco, já que tínhamos acordado muito cedo para meus princípios religiosos de férias. Acordada, fui entendendo aos poucos o desconforme que a mala provocava em mim. 


Olhando ao redor, tanto a paisagem quanto as figuras sertanejas, que partilhavam conosco o transporte, me fizeram relembrar de minhas inúmeras viagens de Russas a Fortaleza e de Fortaleza a Russas durante todo o ensino médio; científico, à época. É... o sertão continuava sendo o sertão. E de algum modo, embora já fora desse universo a mais de vinte anos, de mim ele não saiu. É como dizer, eu saí da caatinga, mas a caatinga não saiu de mim. 


Aí meu olhar parava na Fabiana, sentadinha ali ao meu lado e tal qual a mala fora d'água era a Fabi fora da paisagem. Aquela figura comprida, com a pele toda da mesma cor, cabelo quase liso quase cacheado, no comprimento só do rosto afilado. Bem dizer uma pintura de Modigliani. Nada a ver com as de Portinari por ali espalhadas.


Admitir que alguns costumes desse meu povo passaram a me incomodar, pode até parecer cudoce, mas é certo. Porém, mesmo assim, o Q de familiar é maiúsculo. Eu olhava a Fabiana durante a parada que o ônibus fez no meio do caminho e só conseguia ver a mala Tommy Hilfiger entre sacolas, sacos e bornais. Tão desconforme... 


Ao final de algumas horas, chegamos em Amontada. E cadê a rodoviária pra gente pegar o outro transporte? Estava ali, era a rua. Não, a rua não, era quase um mercado.


Quase? Não, não, ERA o mercado. O ônibus, parado em fila dupla com a manada de motos estacionadas na diagonal do meio fio, paralisava o trânsito. Descemos. E entre motos, bicicletas, cachorros e um arbusto plantado pela prefeitura, conseguimos resgatar a mala. 


Não sei como, mas tive uma presença de espírito resolutivo, que não é muito o meu feitio.


— Tu espera aqui com a mala, que eu vou ver que transporte é esse que temos que pegar até Icaraizinho. Fica aí, que eu volto. - Acho que entendi que naquela condição eu deveria tomar as iniciativas. Afinal, a local, sou eu.


— Tá  bem.


A Fabi, não demonstrava, mas eu sentia que havia um incômodo. Ou será que era eu a incomodada com o imaginário incômodo dela? Sei lá. Descobri que o transporte a nos levar até a praia era uma van. Uma versão modernosa do velho e bom pau de arara. Só saía de tempos em tempos e nós tínhamos dado era sorte: duas estavam já pra sair. 


— Bom dia! É essa a van que vai pra Icaraizinho?


— É sim.


— Mas, já tá lotada?

— Que nada, ainda cabe um magote de gente! Apertando cabe.


— Fabi, sente aqui que eu fico na ponta. - ela disse espera aí com a mão - Ah, você quer ver onde ele vai botar a mala... - falei só pra ela escutar.


— Claro! Você tem dúvida? O bagageiro tá cheio. Alguma coisa vai ficar pra traz. E não vai ser nossa mala.


Já que ela ficaria vigiando para a mala não ser deixada pra trás, eu entrei e me acomodei, se é que se poderia falar em acomodação, no banco onde a gente anda de costas. Bem de frente para todos os passageiros da van. Bem dizer um palco!


Dalí a pouco chega a Fabi e eu aperto o mínimo que consigo meu vizinho da direita. Ela se senta, consegue arrumar espaço pras longas pernas e a van se movimenta. Entre ela e o vão da porta aberta, sobe o cobrador. Um cabrinha novo, usando calça jeans clara, mas já escura da sujeira da lida, uma chinela de rabicho e uma camiseta regata branca bem cavada. Seus mais ou menos 165 centímetros viajavam dividido ao meio por uma pochete preta, já pronta pro lixo. 

 

— Você não vai fechar essa porta, não? - perguntou a Fabi num tom artificialmente risonho, se segurando como dava. E antes que o rapaz respondesse, ela emendou uma brincadeirinha - Senão eu vou ter que me segurar em você. - pra quê ela foi dizer isso prum cearense? O cobradorzinho encheu os pulmões de sua figura esbelta e se exibindo o quanto pode respondeu sem nem pestanejar.


— Fique à vontade, moça. - e logo em seguida continuou - É que ainda vamos parar mais uma vez. Aí eu fecho.


Eu não contive a risada. Nem a Fabi, nem alguns dos passageiros. Naquele momento eu entendi o que eu tentava entender desde o momento em que chegamos na rodoviária de Fortaleza. Embora me visse já um tanto deslocada no cenário, ele era familiar e eu ainda sabia de cor e salteado o texto e a movimentação de palco daquela peça sertaneja.


Acontece, que eu sou cearense, mas acontece que ela não é. Pegamos a estrada e seguimos. 


À direita meu vizinho local e à esquerda, sentada e se segurando como dava, a Fabi. Já depois dela, o cobrador solícito de pé, encostado na porta da van, com seu braço direito apoiado de modo tal que os pelos rebeldes da axila flertavam impunemente com a Fabi a uma distância insegura de uns 50 centímetros; 40 talvez. Eu olhava tudo. No chão, via pés rachados como a terra na seca, que agarravam as chinelas com seus dedos unhosos. Lá fora, o sertão do mar chovido e lindo, como eu tanto gosto. Ora dunas, ora carnaúba e sobre eles o chapéu azul celeste.


Depois de chacoalhar pra lá e pra cá, no melhor estilo pau de arara, chegamos a Icaraizinho: uma vila de pescadores, descoberta por turistas europeus, cuja rua principal e só ela é calçada com paralelepípedos. Ainda durante a viagem fui perguntando a um e outro se conheciam a pousada onde ficaríamos. Logo, nosso destino era domínio público e os passageiros debatiam entre si onde ficava a bendita pousada.


Foi aí que uma moça sentada no banco da frente explicou pro motorista. Que bom, alguém sabia onde devíamos descer. Na quarta ou quinta parada do veículo, tinha chegado a nossa vez. Descemos numa esquina, depois da despedida dos outros passageiros e dos agradecimentos ao motorista e cobrador. Éramos íntimos.


Os ponteiros já se juntavam na testa do relógio, quando li o nome da nossa pousada numa seta de madeira, afixada no poste do outro lado da rua. Alegria. Chegávamos ao nosso destino. O problema é que entre nós e a pousada estavam cerca de 300 metros de terra, que por ser praia não era batida. Nem nos olhamos. Minha vontade era jogar na cara: bem que eu disse pra gente trazer duas bolsinhas! Bem que eu disse! Me calei. Com minha mochilinha verde nas costas, fiz de conta que diante de nós estava a esteira rolante do Charles de Gaulle.


A Fabi, tenho certeza, me deu razão naquela hora. Mas não abriu a boca. Seguiu puxando a Tommy pela calçadinha enquanto existia. No fim da calçada, me ofereci pra carregá-la. Fui procurando trechos de chão mais duro pra poder arrastar a desgraça. Por mim, tínhamos puxado mesmo na areia fofa. Fabi, não.


— Karêzinha, deixa que eu levo. - pegou a mala pelas alças e caminhou. Deixei. Quem mandou ela fazer ouvido de mercador pra minha intuição?


O suor que antes se restringia aos esconderijos das dobras, declarava independência ou morte e brotava de nossos poros achando que um dia viraria rio. Novamente, me ofereci pra carregar a Tommy, já adiantando que o faria pelas alças. Assunguei a danada da mala com toda a força que achei naquela hora e arrochei no rumo da pousada, carregando a pulso!


O diabo é que eu queria rir. Aliás eu queria rir, fazia era tempo. Mas se eu risse, afrouxava na força, o que não podia. A Fabiana mais séria do que a Frida Khalo em seus autorretratos, seguia pisando duro. Aí era que eu queria mesmo rir. Mas me segurei. No último trecho, ela pegou novamente a mala e entrou na recepção com ela.


— Boa tarde.


— Boa tarde. Temos uma reserva no meu nome: Fabiana Evangelista.


— Sim, estávamos aguardando vocês. Aqui está a chave e... - a pousadeira explicou tudinho; sobre a pousada, a vila, onde almoçar, jantar, o que fazer. E continuou. - O carro, eu vou mostrar onde vocês vão deixar.


— Não viemos de carro - disse a Fabi num tom cansado.


— Não? 


— Não. Viemos de ônibus até Amontada e de lá pegamos uma van - contei eu já rindo.


— E vieram arrastando esta mala até aqui? - ela não sabia bem a quem dirigir seu espanto.


Nos olhamos. Aí eu dei de ombros e não aguentei: caí na gargalhada. Claro que a Fabi tentou resistir a rir de si mesma, como fazemos os cearenses genuínos, mas não conseguiu.


Agora eu terminava de entender por que todo mundo quis nos emprestar o carro. Também entendia por que minha intuição dizia para trazermos bolsas pequenas. Não que eu já soubesse o que aconteceria e tudo e tal..., não, mas entendia. O sertão tinha mudado muito desde que eu saí dele, mas não tanto, que eu não me sentisse mais parte.


Trazer isso à tona foi mágico. Ainda mais porque revelava as diferenças profundas em nossas histórias individuais, que acabam por dar tons diversos à nossa história de casal. Afinal, "acontece que eu sou cearense, mas acontece que ela não é”.


Anna Karenina Azevedo Martins


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