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Bissextices



Quando soube que esse seria ano bissexto já comecei a pensar nas coisas aleatórias que eu poderia fazer. Pilates na parede? Yoga somática? Limpar todas as conversas de Whatsapp desnecessárias? Talvez alguns grupos também? Editar tudo que está salvo no Instagram? Sei que fui anotando algumas coisas e elas só foram aumentando.


E então, chegou o dia 29/02 e não tive vontade de fazer nada que estava na lista. Ou melhor, tinha tantas outras coisas normais e rotineiras pra fazer que as extravagâncias bissextas ficaram de lado. 


Tenho a impressão que quando eu era mais jovem, procrastinava menos. Me cobrava mais, era mais disciplinada, tinha uma necessidade enorme de ticar todas as metas prometidas.


Agora está complicado! Esqueço rapidamente das minhas próprias promessas, não ligo muito por não tê-las cumprido, me convenço que foi melhor assim e vamos em frente.


Mas, de vez em quando me preocupo com esse comportamento. É como se outra pessoa tivesse tomado conta do meu corpo, tipo um espírito baixou em mim, hahaha!


Alguém mais?


Dizem que é preciso se perder para se achar verdadeiramente mas tenho pensado mais que vamos nos perdendo em uma espiral infinita, um caminho sem volta,...Tem tanta coisa que eu gostava de fazer e não gosto mais. Tantas coisas que eu comia, tantas pessoas com quem eu falava, programas de TV que eu assistia, hábitos que eu tinha (como caminhar , agora só caminho na esteira)...Mas depois que fui "possuída" pela outra, já não consigo. E crio essas tentativas datadas, como no dia 29/02,  de tentar entrar no rumo de novo de voltar a ser quem eu era. Mas já era. 


Viver como expatriada transforma uma pessoa, não há como não transformar e tenho outras colegas anotadoras que também escrevem nesse espaço que, certamente, hão de concordar comigo.


Nunca mais irei pertencer ao lugar de onde saí e ao mesmo tempo não creio que algum dia eu possa ser onde estou agora quem já fui no meu lugar de origem. Já estou fora de São Paulo há doze anos e fora do Brasil há seis anos. Não é pouco tempo.


Passei praticamente minha década toda dos 40 me adaptando ao meu novo habitat. Vi meus filhos crescerem e deixarem de ser crianças. Já tenho uma filha adulta e independente. Como mãe, minha função ainda existe mas se transformou.


Nesses anos todos não fui motorista como a maior parte das minhas amigas de São Paulo, nem me preocupei com o horário em que voltariam das festas ou pedi para compartilharem corridas de Uber. Mas, em contrapartida, perdi mordomias, tenho que cozinhar todos os dias, moro em um apartamento pela primeira vez na minha vida. Meu círculo de amigos encolheu, tenho poucas companhias para os programas que o resto da família não gosta muito e, por mais que eu sempre tenha sido uma pessoa que adora fazer muitas coisas sozinha, ter que fazê-las quase sempre sozinha acaba por dar uma desanimada.


Então, mudei alguns hábitos, sigo me dando o prazer de almoços, concertos de música clássica, visitas à exposições e até mesmo viagens, mas mais de vez em quando, para eu não me cansar de mim mesma. E fiquei mais seletiva, já não aceito qualquer companhia.


Sempre digo que só quero que estejam comigo em determinado programa quem realmente quiser estar lá, por vontade própria, já não consigo "arrastar" outras pessoas para programas ou lugares  que eu gosto tanto e são especiais. Não quero ficar tensa me preocupando se está agradando ou não. Quem mais? Prefiro ir sozinha ou nem ir. A "outra" me dominou e não me deixa ser quem eu era antes. Posso ser chamada de chata, bicho do mato, anti-social. Me julgo mais que tudo, criteriosa.


Quando os filhos crescem, perdemos o poder de decisão de todas as viagens, passeios e até simples jantares. Não dá mais para impor nada. E nem que desse eu gostaria de impor, pelo mesmo motivo já mencionado, pela tensão de ter que agradar, de pensar se o lugar escolhido é bom, se todos vão ficar satisfeitos. Então, na minha família agora sempre decidimos tudo juntos, a não ser que seja algum lugar que já fomos e é sabido que é do agrado de todos.


A vida são fases e vamos nos adaptando, nos transformando, nos perdendo tentando nos acharmos.


Voltando ao início para não parecer que esse é um texto sem pé nem cabeça, oportunidades como um único dia a mais no calendário podem nos tirar da mesmice na medida em que nos fazem refletir (e divagar nessas tantas linhas...).


Somos bombardeados por tantas coisas o tempo todo e quando falei da yoga somática ou do pilates na parede, de verdade tenho vontade de experimentar! E o monte de receitas que se acumulam na minha pasta de receitas no Instagram? Não dá pra pausar a vida num único dia a cada 4 anos mas acredito que temos que estar esvaziando gavetas físicas e mentais o tempo todo. Abrindo espaço para o novo, deixando que a "outra" me domine porque quem eu era já não existe mais. E está tudo bem!


Maria Tereza De Iuliis

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