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Domesticando o fogo



Recentemente, por ocasião do meu aniversário, resolvi fazer meu mapa astral, mesmo que a formação religiosa aqui dentro me impeça de pautar a vida por esse tipo de sabedoria. Adorei a experiência. E sabendo a hora em que nasci, 23:10, pude conhecer com precisão as histórias do céu naquele momento e como o seu desenho acabou me constituindo de algum modo. Agora eu sabia não só o signo, que sempre foi Escorpião, bem como o ascendente: Leão. Confesso que já gostava muito do Escorpião e que ascender em Leão me agradou demais!

           

Escorpião, signo de água e Leão, signo de fogo. Fogo e água, água e fogo. Esses dois elementos que, se opõem tão diametralmente, sempre me encantaram. Não saberia dizer qual dos dois eu prefiro. Adoro não só a beleza do fogo desenhado pelas fogueiras e tudo o que acontece ao redor delas, mas adoro o poder do fogo, sua capacidade de aniquilar, destruir.


Naquele ponto da história, morávamos em Russas, na casa velha ainda. Era manhã, mas já perto do almoço. A corda que tinha segurado a pata traseira da ovelha, morta no sábado, ainda balançava no pé de seriguela. Bem abaixo dela uma mancha de sangue já escura. Mais pra perto da casa, um registro de uma pequena fogueira improvisada para ferver água suficiente para a limpeza das partes menos nobres do animal. Todo o quintal era quase só sol.

           

Juntei uns gravetinhos bem em cima da mancha de sangue, queria fazer minha própria fogueira. Talvez, toda criança passe por uma fase em que se sente atraída pelo fogo. Pois era bem nessa fase que eu estava. Devia ter 6 ou 7 anos. Depois de organizados os gravetos era necessário um combustível e um disparador da ignição. Entrei no alpendre e me pus a matutar como eu poderia acender minha super fogueira.


Álcool, claro! Álcool e fósforo. Só que não adiantaria nada pedir à maínha, porque dela eu tinha ouvido já mil de vezes: quem brinca com fogo, uma hora acaba se queimando. Ela não ia deixar.

           

Naquela casa, a construção tinha deixado o banheiro fora da casa com a porta para o alpedrezinho que dava para o quintal. Aproveitei que estava ali e fui fazer um xixi meditativo procurando num jeito de concretizar meu plano. Terminado o serviço, mãos devidamente lavadas, como é possível a uma criança naquela idade, aperreada para acender sua fogueira, entrei em casa e me alegrei ao ver que minha mãe não estava na cozinha e sim lá na porta da rua conversando com a tia Lourdes que chegava para o almoço. Elas foram como irmãs.

           

Entrei na dispensa, no exato momento em que uma nuvem bem gorda cobriu a casa. Escureceu tudo. Sim, porque em casa de telhado nu a iluminação interna oscila com o lá fora. Precisei esperar os olhos se acostumarem. Achei. Ali estava ele. Habitante de um frasco de plástico transparente com tampa azul marinho, desses acinturados pra facilitar o manejo da mão adulta. As minhas não eram, mas eram duas. Firmes no mesmo propósito seguraram o frasco com força, quando os ouvidos deram notícia do fechamento da porta lá fora. Me apressei. O fósforo aguardava sua missão sobre o fogão a lenha. Para pegá-lo tive que soltar o álcool sobre o fogão. Perto demais do fogo que cozinhava o feijão do almoço.


Caixa de fósforo no bolso do calçãozinho, mãos na cintura do álcool e perna pra que te quero. Fui, suficientemente, rápida para a mamãe não me ver.

           

Ali estava eu. Diante do grande feito da minha pré-história. Abri o álcool e derramei um pouquinho sobre os gravetos. Fazia tanto calor que era capaz do fogo acender sozinho sem a ajuda do fósforo. Mas eu não podia esperar tanto. Acocorada do ladinho do futuro fogo, passei sobre meus joelhos o vidro de álcool e o deixei descansar à minha direita.


Fiquei de pé pra conseguir tirar do bolso a caixa de fósforo e novamente me acocorei. Sempre tive muita destreza com as mãos, mas nunca tinha acendido um fósforo antes. O primeiro deixei escapulir e ele voou pegando fogo, porém longe da minha fogueira. Logo se apagou no chão. Já o segundo nem acendeu. Só no terceiro é que eu consegui domesticar meu primeiro foguinho particular.

           

Parei no tempo e no espaço olhando fixamente a pequena chama, que quase não se mostrava tamanha era a competição com o sol. Linda, dançando pra lá e pra cá, deixando preto o pauzinho que eu segurava. Me assustei quando o calor chegou a meus dedinhos polegar e indicador direitos. Joguei o palito na fogueira. Nada, nenhuma gota de fogo. Tinha sido pouco álcool demais. Respirei fundo. Um pouco mais de álcool, dessa vez, com mais decisão. Fósforo aceso e logo sendo jogado na fogueira. Agora sim... agora eu tinha conseguido.

           

Mas pouco depois de acesa parecia que ia morrer. Eu não podia deixar isso acontecer. Jamais! Peguei o frasco de álcool novamente e pensei em dar de beber ao fogo, pra garantir sua vida. Não sei por que, mas achei melhor ficar de pé. Segurando a garrafa com as duas mãos, inclinei a boca na direção da fogueira e balancei-a pra frente a fim de que saísse um pouco do líquido mágico. Como não saiu quase nada, apertei a cintura. A garrafa regurgitou seu conteúdo num gole ao contrário. Até que enfim eu tinha uma fogueira de verdade.

           

Encantada com o feito, deixei o álcool pra lá e passei a apreciar a cena. Acocorada ao lado de uma fogueirinha, sentindo seu calor insuportavelmente gratificante no rosto e, nas costas, o sol de quase meio dia. Era um fogão! As labaredinhas dançavam como a juba de um leão ao vento. Até que uma delas se aproximou demais do álcool me fazendo prestar atenção nele. Que sorte! Ou seria o Leão do ascendente? O frasco já se deformava por causa do calor da fogueira. Num movimento reflexo, peguei a garrafa e a afastei do fogo, mas o inevitável aconteceu. Quatro, dos cinco dedos da mão esquerda se queimaram no plástico quase derretido. Não chorei. Nem quis chorar. Mas doeu que só. Como o fogo já se despedia, aproveitei os últimos segundos de sua companhia, acocorada perto dele, com a palma da mão pra cima, pros dedos não magoarem em nada.

           

Fim do espetáculo. Tampei o álcool prevendo o carão que levaria quando minha mãe visse aquilo. Não tinha me dado conta, mas ela me olhava do alpendre. Estava procurando pelo fósforo. Certamente, chegou depois do perigo, senão não teria ficado só olhando.


Desconfiada, olhei pra ela baixando a cabeça, assumindo. Quando ela viu a garrafa deformada, veio ligeira ao meu encontro. Sentiu o calor da garrafa, que já não era de queimar, guardou o fósforo no bolso do vestido bege e me olhou sorrindo. Ainda não aliviada lhe mostrei meus dedinhos já com lindas bolhas de água estufando as digitais. Ela olhou, sorriu de novo, balançando a cabeça como se dissesse “não tem jeito” e disse pela milionésima vez: quem brinca com fogo, uma hora acaba se queimando!


É, me queimei mesmo, mas não tenho dúvidas de que fui salva pelo leão que ascende sempre quando é hora de nascer.


Anna Kerenina Azevedo Martins

 

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