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Fagulha: Conselho



 

Abacateiro

 

“Abacateiro,

acataremos teu ato.

Nós também somos do mato,

como o pato e o leão.

Aguardaremos.

Brincaremos no regato

até que nos tragam frutos

teu amor, teu coração.”

 

           

Quando nos mudamos para a casa nova, o quintal foi a área mais trabalhada. Painho mandou logo trazer duas carradas de areia do rio, que era para a gente pisar descalça e criar cava no pé; plantou grama nos primeiros dois metros depois do alpendre, cobrindo bem a fossa e o sumidouro.


A mamãe se encarregou da plantação. Mandou fazer um canteiro no muro do lado esquerdo, onde cresceram os cheiros verdes, o pimentão, o tomate. Ela foi jogando sementes de mamão aqui e ali e separando as mudas mais fortinhas para serem plantadas em suas corvas particulares.


Depois, papai se meteu a plantar também e um dia chegou com dois cocos brotados, que mamãe acomodou em linha do lado direito. Ela plantou também uma goiabeira, para eu matar minha vontade de subir em árvore e por último, você. Ou foi você antes da goiabeira? Não sei. Só sei que você veio morar conosco porque suas folhas eram boas para os rins do painho.


Na verdade verdadeira, você e um pé de torém serviam de remédio. Nessas férias, voltei a Russas com meus irmãos e minha cunhada e sempre que vamos lá, visitamos a Sílvia Helena. Se lembra dela, nossa vizinha de muro? Sempre encantada com os quintais, fui logo espiar o dela.


Ela me disse para apanhar uns limões e goiabas para levar para a mãinha. Quando seus avós eram vivos, aquele quintal me parecia mais uma minifloresta; como era grande e lindo! Mais alto que o chamado do limoeiro ou da goiabeira, foi o chamado de um buraco enorme no muro, dando vista para o nosso ex-quintal. Não resisti. Fui até ele identificando bem o tamanho de cada tijolo que tinha se desmanchado para abrir aquele olho enorme. Quase enfio minha cabeça do outro lado. Procurei por você mesmo sabendo que já a tanto se mudou de lá. Ainda estão por lá os indícios do que foi o alpendre lá do fundo, que no auge de nossas vidas, desfrutava de sua sombra. Mas de você, nem toco pude ver.

 

“Abacateiro,

teu recolhimento é, justamente,

o significado

da palavra temporão.

Enquanto o tempo

não trouxer teu abacate,

amanhecerá tomate

e anoitecerá mamão.”

 

Quanto tempo esperamos seus abacates, sem entender por que você tão grande e tão frondoso, como floradas de forrar o chão, nunca sustentou um abacatezinho sequer.


Enquanto aguardávamos seu tempo, sua sombra era nossa companheira. Aliás, minha goiabeira também se aliviava do calor do sol embaixo da saia da sua copa. Até tentei subir em você, mas nunca consegui. Capaz que a poda tinha ajudado você crescer espichado até. Eu adorava me sentar no piso do alpendre, enfiar no chão do meu lado direito um pedaço de cabo de vassoura e fazer dele o câmbio de marcha do meu automóvel particular.


Você no banco do carona. Depois de dirigir por todo o quintal a 100 por hora, estacionava meu carro de novo embaixo da sua sombra. Por ali continuávamos amanhecendo tomate e anoitecendo mamão.

 

“Abacateiro

sabes ao que estou me referindo.

Porque todo tamarindo tem

o seu agosto azedo

cedo, antes que janeiro

doce manga venha ser também.”

 

Depois que saí casa para fazer o científico em Fortaleza, nunca mais sai com meu automóvel em alta velocidade pelo quintal. Era a coragem infantil que aprendia a adormecer de vez em quando.


Até que no fim de tarde de um daqueles sábados ela acordou me fez sentar novamente no banco da motorista, enfiar no chão um pedaço de pau qualquer e, disfarçadamente, guiar meu automóvel pelo quintal, morrendo de vergonha que alguém, além de você, pudesse ver. Aquela foi a última vez e você estava lá comigo, sentado imponentemente no banco do passageiro. Tivemos outros encontros, mas nunca mais passeamos de automóvel.


Outra vez, isso tempos depois, fui a Russas quando o papai já morava lá sozinho. Ele reclamava que eu não ia lá com frequência. De fato, eu podia ter ido mais. Hoje eu queria ter ido. Quase me sinto o seu agosto azedo. Quem será que desviveu você? E quando? Terá pedido licença? Quem desviveu o papai foi a COVID, em dezembro de 2020, sem pedir licença. Quanto tempo será que vocês conviveram, ele bebendo o chá das suas folhas?


Muito tempo foi.

 

“Abacateiro

serás meu parceiro solitário

nesse itinerário

da leveza pela ar.

Abacateiro

saiba que na Refazenda

tu me ensinas a fazer renda,

que eu te ensino a namorar.”

 

Só muito agora eu fui saber por que você nunca sustentou uma fruta sequer. Quer que eu te ensine a namorar? É que indivíduos da sua espécie, mesmo tendo flores femininas e masculinas, o que a minha espécie chama de dicogamia, ou hermafroditismo vegetal, elas nunca abrem na mesma hora! Pode ser que as femininas abram de manhã e as masculinas de tarde ou o contrário. Não importa. De um jeito ou de outro, se nem uma temporã atrasar o suficiente para conseguir alcançar a abertura das próximas, nada de fruto. Apenas sombra e chá fresco.


Mas é claro que você sempre soube namorar, não é mesmo? Quem não sabia éramos nós. Talvez minha velha não queira plantar outro abacateiro nesta vida. Mas se ela quiser, vou lhe dizer que plante dois.

 

“Refazendo tudo

Refazenda

Refazenda toda

Guariroba.”*

 

 

*Letra de Refazenda, música de Gilberto Gil.  

 

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