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Minhas memórias dos outros



​Acho que com todo mundo é desse jeito.


Quando as memórias próprias começam a nascer, elas vão se dando conta de que muitas irmãs mais velhas já estavam por aqui há tempos: as memórias dos outros sobre você. E é muito divertido ter figurinhas no álbum de Mim coladas por outras pessoas. 


Nesse assunto, pai e mãe são campeões! 


Ah, sim, irmã, irmão mais velhos também. Mas, como eu desfruto da primogenitura, não conto com essa contribuição adicional ao meu repertório de episódios da primeira temporada. 

O mais interessante é que essas minhas memórias dos outros parecem ser tão fortes quanto a imagem que eles têm de mim no presente.


É estranho que na mulher de hoje caibam aquela menina, aquele bebê, aquela adolescente. Mas cabe. Dá pra perceber o que as pessoas enxergam quando me reconhecem nesse corpo de agora. 


​— Essa é a menina da Vilanir? Você era um bebê lindo! - ouvi de um primo da mamãe, no velório do meu tio, uns 2, 3 anos atrás.


​— É a menina do balde? Tu sabia que teu pai te carregava num balde, com água, pela rua? - disse um amigo velho de meu pai, quando passamos pela casa onde morou com sua mãe. Era perto da primeira rua da minha vida.


​Eu me imaginei acocorada dentro dum balde com água, com as mãos de 6 cm apertando a borda, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá no ombro do meu pai menino.E ele ainda completou.


​— Aí teu pai te deixava no poste - como assim?


Na hora eu nunca me lembro de perguntar "como assim?" Não há poste no mundo que tenha espaço pra segurar um balde, ainda mais com um bebê de meses dentro dele. É... isso deve ser mesmo presepada do Deusimar.


Engraçado, esse nome parecia tão enorme de grande, quando eu era pequena, que assim, escrito agora, ficou pequenininho... Talvez o que eu visse, ao invés do nome, fosse mesmo aquele ser gigante ao meu olhar que resumia em si duas enormidades: deus e mar.


Eu devo mesmo é ter sido um brinquedo nas mãos de 28 anos do meu pai.

Não tenho registrado em mim que seu desejo fosse ter no primeiro filho um homem. Isso nunca me ocupou a alma. Mas quando veio o segundo, sei que ele quase enlouqueceu, quando minutos depois da notícia de que tinha nascido um menino e de que passavam bem ele e a mãe, a criança não tinha sobrevivido.


Seria meu primeiro irmão. Talvez mais próximo até do que os que tenho hoje. Outra estranhosidade é essa de um irmão nunca tido. Mais uma figurinha que vou acreditando no meu álbum.


​Mainha conta que quando ela saiu de casa pra maternidade, me disse que ia ali buscar meu irmãozinho e me deixou com a tia Lourdes, a irmã postiça dela. Eles voltaram e trouxeram o nenê pra casa, mas ela não me deixou vê-lo. Disse pra tia Lourdes que não era pra eu ver. Eu devia ter menos de 2 anos.


Aí, foi inevitável perguntar por ele.

​— E o irmãozinho, mamãe?

​— Ele não veio filha.

​— Por que, não veio?

​— Porque o Papai do Céu levou.

​— Por que o Papai do Céu levou, mãe?

​— Porque ele era tão lindo, que o Papai do Céu quis ele pra Ele.

​— E eu não sou tão linda, mamãe? 

​— É sim, filha!

​— Mas por que o Papai do Céu não me levou?


​Nem posso imaginar o que mainha sentia nas entranhas durante essa conversa. Ela também me contou que dias depois, quando a encontrei chorando em algum lugar da casa velha, depois de passar a mão gorducha no riacho que nascia nos seus olhos, lhe disse:


​— Chore não, mamãe. O Papai do Céu manda outro pra você - e mandou mesmo. Mandou logo dois!! 

Outra figurinha que o painho me conta é que eu pedia pra ele cantar "Sabiá lá na gaiola".


Dessa cena eu já tenho uma penugem de imagem. Nós dois deitados numa rede armada no canto esquerdo da sala de jantar. Ele no comprido e eu na largura, com minhas pernas curtas e rechonchudas sobre sua barriga.


A sala ficava depois dos quartos e ocupava toda a extensão do terreno da casa. Quatro portas a ventilavam. Na parede de cá ficavam a do corredor, bem alta e estreita feita de duas folhas verticais, e a do meu quarto, também de folhas verticais e menorzinha.


Já na parede dos fundos nos olhavam as portas da cozinha, bem em frente a do meu quarto, e a que dava pro alpendrezinho antecessor do quintal. Era bem em frente a essa porta, a mais ventilada, que costumávamos armar a rede.


​— "Sabiá lá na gaiola, furou um buraquinho. Voou, voou, voou, voou" - e a rede balançada daqui pra lá e de lá pra cá, daqui pra lá e de lá pra cá e meu olhar ora fixo no bigode escuro do meu pai, ora nos retalhos do telhado tão alto - "E a menina que gostava, tanto do bichinho, chorou, chorou, chorou, chorou" - e nessa hora o painho conta que eu choraaaava. 


Eu chorando e ele rindo do meu choro previsto e desejado. Aí ele parava de cantar, mas não! Eu não queria que ele parasse. Aliás, eu é que pedia pra começar, ele me disse - " Sabiá fugiu da gaiola, foi pousar no abacateiro" - nessa hora eu cantava junto com ele chamando pro telhado o sabiá fugitivo - "E a menina ficou chamando, vem cá, sabiá, vem cá" - depois que acabava, era pra começar tudo de novo.


Acho que só parávamos quando eu já não tinha o que desaguar.


​Não faço a menor ideia porque eu pedia a meu pai pra cantar essa música, se toda vida que ele cantava, eu chorava. Talvez eu quisesse chorar o voo do meu irmão pro céu. Talvez eu chorasse todas as tristezas infantis.


Ou não.


Quem sabe apenas ensaiava aquela mágica da mamãe de fazer nascer nos olhos pequenos riachos.


Não sei. 


Fato é que dali por diante, eu não contaria apenas com as memórias dos outros pra preencher meu álbum de figurinhas. Agora, eu também teria minhas próprias memórias biográficas.


Anna Karenina Azevedo Martins


 

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