Na maioria dos sábados, ligo pra minha mãe e naquele não foi diferente. Ela estava especialmente excitada com a mudança de casa, com as arrumações de caixas e com a escolha do que levar e do que deixar para trás. E casa de mãe, já viu como é: objetos memória da família de quando morávamos juntos, montes de fotografias antigas e álbuns velhos...
Enfim, hora de jogar fora, distribuir, doar, hora de diminuir. Foi nessa conversa que ela me perguntou sobre alguns dos meus brinquedos velhos, que ainda estavam por lá.
— Não mainha, jogue fora não! Em dezembro quando eu for, vejo o que faço com eles.
— Ah, Aninha, minha filha, tem certeza?
— Tenho. Pode deixar que eu dou um jeito neles. Mas não jogue fora, viu?
— Tá bom. Vou esperar, hein?
Depois que desligamos fiquei com cara de boba sentada no sofá, com o olhar perdido na parede, pensando naqueles brinquedos. Tentei me lembrar quais eram os que ainda tinham sobrevivido ao espírito destruidor dos meus irmãos.
Claro! Uma boneca metade pano metade plástico molinho, Dona Pirueta e um Mundo Feliz: um cogumelo casa branco com grandes bolas vermelhas onde morava uma família de bonequinhos, que não passavam de 3 cm. Não tenho a menor dúvida de que esse cogumelo foi meu brinquedo favorito. Como eu tinha ciúmes quando meus irmãos queriam brincar com ele. Não era pra menos, eles sempre destruíam tudo! Aí logo me lembrei de como foi difícil ganhar aquele brinquedo.
Eu devia ter entre sete e oito anos. Lá em casa não tínhamos o costume de ganhar presentes. Nem de aniversário, muito menos de natal, pois em casa de evangélicos, isso é bobagem. Mas aí, em um daqueles anos, encontrei coragem para pedir um presente a meu pai. Naquela época morávamos numa cidadezinha do interior, tão pequena, que as compras do mês meus pais iam fazer em Fortaleza.
Aproveitei a viagem e pedi o dito cogumelo. Não me lembro se mostrei a ele numa propaganda, ou se foi em algum encarte de jornal. Tampouco me lembro de como fiquei sabendo da existência dele.
— Vamos ver – ele disse. Era assim que em geral ele respondia quando queria ser vago.
Na sexta-feira depois do expediente ele se arrumou e pegou o ônibus. A volta era sempre aos domingos à tarde. Alí começou minha ansiedade infantil. Nem precisava do adjetivo que ansiedade é igual em qualquer idade e ruim do mesmo jeito.
— Mamãe, será que o papai vai trazer meu presente?
— Vamos torcer.
— Ah, eu tirei só notas boas no colégio e... eu nunca peço presente.
— Acho que ele traz sim, filha. Vamos esperar.
Ai como esperar é ruim, meu Deus! Naquela sexta-feira até fui me deitar mais cedo, querendo que o tempo passasse mais rápido. Quanto tempo eu teria mesmo que esperar? Quando se é criança não é só a mesa que é grande e a janela alta. O dia é muito mais comprido que 24 horas.
No sábado acordei sonhando que era domingo. Logo me levantei e fui tomar banho para me arrumar e ir para a Escola Dominical. Acordei com a mainha me perguntando aonde ia vestida daquele jeito. Ela riu e eu fiquei decepcionadíssima com o dia da semana. “Odeio os sábados”, pensei. Bem que se eu soubesse que ia acordar no sábado, certamente eu teria dormido mais. Já que estava acordada e banhada, não me restava outra senão viver aquele dia. E que dia. Fui à casa dos meus vizinhos, passar o tempo olhando D. Franclina fazer seus chapéus de palha, fui à mercearia para minha mãe, visitei minhas amigas, assisti os Flintstones, viajei na minha nave espacial atrás do guarda-roupas e tudo isso antes do almoço. Meu Deus! Os outros sábados passavam sempre tão rápidos. Por que logo aquele se arrastava como um jabuti manco?
A tarde desfilou seus minutos com uma lentidão exasperadora. E claro que a noite não seria minha amiga. Saímos na calçada com a bola e logo se formou aquela ruma de meninos e meninas de todas as cores vestidos só de calção. Enquanto eles vinham chegando, eu ficava, sem me dar conta, selecionando quem eu deixaria brincar com meu Mundo Feliz. “Esse sim, aquela talvez, essa nem pensar, esse também não.” E aí durante o jogo, cada vez que a bola escapulia e alguém ia buscar eu ficava conversando com quem estivesse mais perto de mim, contando que meu pai tinha ido a Fortaleza e que ele traria meu presente de aniversário, que era muito bonito, que eu queria muito, que seria muito legal... enfim. Eu estava alí jogando e minha cabeça no mundo da lua, ou melhor, no Mundo Feliz.
Foi tarde e manhã daquele sábado. E o domingo chegou. Eita, que foi pior. Sim, porque os domingos são dias para os arrependimentos, os pedidos de perdão, as organizações para o recomeço de mais uma semana de vida. E nesses dias eu sempre doía com uma pontinha de culpa por não querer ir ao culto da noite e ficar assistindo os trapalhões.
Levantei antes que minha mãe me chamasse, mas não quis ir à igreja. Imagina, se meu pai decidi voltar antes? Não, não iria correr o risco de ele chegar e eu não estar em casa.
Depois de tomar aquele copão de bananada comecei a sentir uma dor de barriga, incrível. Foi o suficiente para convencer a minha mãe de que o melhor era me deixar em casa. E ali fiquei dorminhoca. Quando acordei, o sol brilhava forte e alto indicando que já estaria quase na hora da mamãe voltar da igreja com meus irmãos. Sim, eles não conseguiram convencê-la de que o melhor era ficarem cuidando de mim.
Ouvi o batido do cadeado na grade de ferro. Era assim que chamávamos quem estava em casa. “É o painho!” Levantei de um salto e corri enroscando a colcha da cama nos pés. Quase cai. Um sorrriso maior que meu rosto se abriu. Fui em direção à entrada me desviando das cadeiras, mesa e outros objetos. Abri a porta, depois de me precipitar contra ela e já na área que dava para a calçada, ouvi as vozes dos meus irmãos. Parei de sopetão no meio da área e olhei para os três com cara de decepção. Aí me dei conta de que tinha me esquecido de pegar a chave.
— Pensei que fosse o papai.
— Mas seu pai só chega no ônibus das 4. E nós ainda nem almoçamos, filha. Você melhorou?
Entraram. Meus irmãos, já começaram a brigar enquanto colocávamos a mesa para o almoço. Nem à força eu ia deixar eles brincarem com meu Mundo Feliz. Nem à força!
Almocei sentindo um gosto de tédio.
— Agora vamos descansar.
— Ah, mamãe, eu quero esperar o papai.
— Mas minha filha ainda demora pra ele chegar. Demora pelo menos umas três horas. Dá tempo demais de você repousar um pouco e estar acordada quando ele chegar. E sabe do que mais? Dormindo, as horas passam mais rápido.
Ela disse isso quase cochichando ao meu ouvido. Meus olhinhos brilharam felizes com a possibilidade de acelerar o tempo. Ligeira, fui para meu quarto, decidida a me entregar ao sono e comecei a me imaginar bem pequena do tamanho dos moradores do Mundo do Feliz. Como seria subir e descer naquele elevador, andar naquele carro...? Nessa brincadeira, dormi. Quando acordei, uma nuvem bem gorda devia estar sobrevoando nossa casa. O quarto estava tão escuro que pensei que fosse noite e levantei assustada achando que meu pai já tivesse chegado.
Corri até a sala e vi que estava tudo calmo demais. Minha mãe sentada na área da frente lendo o jornal e meus irmãos brincando do lado dela. Mas aí, nessa hora, ouvi o assobio do meu pai. Que felicidade!! Eu não sabia se pulava, se corria, ou voava! Fiquei paralisada como uma centopéia que não sabe por qual perna começar a andar. Pulos e mais pulos e corri. Pela grade dava pra ver que ele tinha uma caixa. Grande! Poucas compras, mais uma caixa. Era meu cogumelo, era meu cogumelo! Olhando bem, achei um pouco estreita, mas não. Era meu cogumelo, era meu cogumelo! Meu Mundo Feliz!!
A mainha abriu a grade, cumprimentaram-se com um beijo e um abraço, depois meus irmãos abraçaram suas pernas, cada um de um lado, e eu fiquei olhando aquilo tudo a uma distância que me permitia ver toda a cena. Entraram com as compras e ele com a caixa nas mãos. No meio da área ele abaixou-se e me abriu os braços. Corri e abracei-o.
— Seu presente. Espero que você goste – “Como assim espero que você goste? Se ele não comprou nada diferente do que eu pedi é claro que vou gostar!” Esses malditos pensamentos me desconcentravam do meu cogumelo. É claro que eu ia gostar.
— Achei linda e pensei que você também ia gostar – “Ai papel, sai daí” Enquanto eu rasgava o embrulho meus olhos se negavam a ver o que estava na embalagem. De fato, a caixa era muito estreita para caber meu Mundo Feliz. “Mas vai ver que eles colocaram nessa caixa porque... porque... porque as caixas do Mundo Feliz tinham acabado. É isso, é isso.” Eu mesma não queria acreditar que o presente não era o que eu queria, mas meus olhos já tinham entendido tudo. Tanto, que já choravam sozinhos. Na embalagem uma menina feliz brincando com sua máquina de costura. Mas dentro estaria meu cogumelo. Abri. Dentro estava uma maquinhinha de costura e fora uma menina triste, muito triste.
— Gostou filha? – perguntou meu pai. Eu não consegui responder nada.
— O que foi meu amor? – Abracei minha mãe pela cintura e chorei. Só depois percebi que meu pai se decepcionou porque eu não tinha gostado do presente. Mas também, que mania ele tinha de achar que as escolhas dele eram melhores que as nossas! Eu queria meu Mundo Feliz! Eu queria o que eu queria! Num esforço sobre-humano tentei brincar com a máquina. Mas a desgraçada ainda precisava de pilha e meu pai não tinha trazido.
Não consegui disfarçar o desapontamento. Fiquei por ali tentando não odiá-la.
— E foi mais cara do que o cogumelo que ela queria.
— E por que você não comprou o que ela queira?
— Ah... quando eu vi a maquinhinha fiquei encantado e achei que ela ia gostar; porque você costura e ela ia aprender com você.
— Ha, ha, ha... acho que você é quem quer aprender a costurar, não ela. Dá pra trocar?
— Vai ter que dá. Semana que vem terei que voltar a Fortaleza para resolver um problema de aposentadoria de uma cliente. Termino as compras e troco a bendita máquina.
— Que bom. Então avise logo, porque você não viu a ansiedade dela esse fim de semana.
Minutos depois, meu pai veio e abaixou-se perto de mim. Passou a mão na minha cabeça e me beijou.
— Papai vai a Fortaleza semana que vem e vai trocar pelo cogumelo que você queria. Está bem? Agora não precisa mais ficar triste.
Concordei com a cabeça, porém as lágrimas continuavam saindo sozinhas. Mas eu já tinha entendido que no outro domingo eu teria meu cogumelo. Meu querido Mundo Feliz. Hoje eu até tenho vontade de comprar uma máquina de costura e aprender a costurar tão bem quanto minha mãe. Mas naquele dia... como eu odiei aquela máquina.
Dois meses depois daquele sábado, lá estava eu na casa de minha mãe. O Mundo feliz já não tinha sua caixa. Faltava um bonequinho e os adesivos das paredes estavam bastante amarelados. De fato, já não fazia sentido guardar aquele brinquedo. As lembranças de nossas brincadeiras já estavam estampadas no pano da memória e isso ninguém leva.
— E aí, vamos doar pra igreja?
— Doar sim, mas pra igreja não, mainha. Eu quero dar para uma criança que eu conheça. Que é pra ver seus olhos brilharem. Que tal as filhas da Ana Maria?
Anna Karenina Azevedo Martins
Comments