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Para não dizer que não falei das bruxas






“The witch is the enemy of God, the enemy of men, enemy of the State. It’s the ultimate, irredeemable evil. And it’s a woman.” [1]- Silvia Federici


Não sei exatamente qual foi o caminho que me levou, semana passada, a descobrir um podcast da BBC Radio 4 sobre bruxas[2]. E agora que estou escrevendo sobre isso, parei para pensar do porquê eu ter achado que seria interessante ouvir o podcast e, mais ainda, escrever sobre este assunto aqui.


Correndo o risco de perder sua atenção a partir desta próxima frase, o que me segurou no podcast foi o fato dele tratar de um tema relevante para alguém que se arvora a pensar as dinâmicas de poder que sustentam a condição da mulher nas sociedades moderna e pós-moderna.


Para você que ainda continua por aqui, admito que eu não tinha muita clareza dessa correlação entre bruxas e feminismo além do já cansado jargão que crescemos ouvindo, de que toda mulher é meio bruxa, e das histórias de mulheres que, supostamente adeptas de todo tipo de feitiçarias, foram perseguidas, torturadas e queimadas, literal e figurativamente.


Ao longo de 13 episódios, fiquei intrigada sobre várias das questões que o podcast aborda - e quem sabe eu fale mais desses assuntos em outros textos-, mas agora vou contar rapidamente sobre algo que me chamou a atenção e que provavelmente vai me fazer comprar mais livros e ficar ansiosa por não conseguir lê-los.


Muito se especula sobre os motivos da perseguição, tortura e massacre de milhares de mulheres acusadas de bruxaria entre os séculos XV e XVIII, tanto na Europa quanto no Novo Mundo. No entanto, há historiadores que argumentam que a ideia da mulher diabólica estaria intrinsecamente ligada à ideia da propriedade sobre a terra. Esses historiadores sustentam que as mulheres acusadas de bruxaria foram principalmente aquelas que de alguma maneira se rebelaram contra os lugares social e econômico que a transição para o capitalismo e a perda de seus direitos sobre a terra as colocaram.


Resumindo muito a história e tentando não ser leviana com os fatos, com a transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, o senhor feudal, antes detentor da posse da terra, era agora seu proprietário. Com isso, as pessoas marginalizadas da terra passaram a trabalhar em troca de salário, e por pessoas que trabalhavam por salário devemos entender homens, e não mulheres.


Nesta nova ordem das coisas, o trabalho não remunerado não é mais considerado trabalho e o único que passa a ser valorizado é aquele exercido pelos homens. Nas palavras livremente traduzidas do podcast: “quem ganha o pão passa a ser dominante sobre quem faz o pão”.


Assim, o status das mulheres - que até então eram parte da força produtiva nos campos - sofreu uma mudança significativa tanto no aspecto social quanto econômico. Elas passaram a ficar confinadas no trabalho reprodutivo, como verdadeiras máquinas de produção de novos trabalhadores e desta maneira, portanto, altera-se profundamente a relação entre produção e reprodução, entre homens e mulheres.



A partir do momento em que as mulheres ficaram social e economicamente vulneráveis, sobre elas foi exercida toda sorte de controle e contenções, e a elas foram atribuídos os desvios e infortúnios da sociedade como um todo. Nas palavras de Silvia Federici, as bruxas “eram mulheres que resistiam à própria pauperização e exclusão social. Ameaçavam, lançavam olhares reprovadores e amaldiçoavam quem se recusava a ajudá-las”.[3] Como consequência, passaram a ser aceitáveis novas e diversas formas de violências exercidas contra elas.


Embora não seja possível determinar o número exato de mulheres que foram acusadas e mortas por bruxaria, estima-se que tenham sido centenas de milhares de execuções. E como tudo que envolve a narrativa das pessoas marginalizadas das sociedades, há muitos buracos que ainda precisam ser preenchidos nessa história.


Mas como narrativas são bases sobre as quais construímos nossas identidades e projetamos nossos futuros, é muito importante jogar luz sobre a história dessas mulheres, para que ela possa ser recontada sob uma nova perspectiva e, quem sabe, criar novas realidades para gerações futuras.


Bia Carvalho

[1] “A bruxa é inimiga de Deus, inimiga dos homens, inimiga do Estado. É o maior e irremediável mal. E é uma mulher.” – Silvia Federici, feminista e historiadora [2] O podcast chama-se Witch, foi realizado pela BBC Radio 4 e pode ser ouvido nas plataformas de streaming [3] Federici, Silvia. Mulheres e caça às bruxas. Ed. Boitempo

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