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Quem você pensa que é? Sobre genes, feridas e herança



           

Circula na internet, o vídeo de um ator famoso, onde ele calcula o número de indivíduos que compõem a árvore de costados de uma pessoa; ou seja, todos os indivíduos e histórias e genes que vieram antes de nós e nos constituem. O vídeo termina com o apelo dele para que façamos por merecer essa herança.


Quem me conhece sabe o quanto esse negócio de ancestralidade me interessa. Em julho do ano passado, botei no mundo um livro que guarda algumas das histórias da família da mamãe. E esse livro e sua apresentação para minha família e amigos me fizeram meditar muito sobre qual é nossa responsabilidade com essa herança. O que eu devo a esse número absurdo de pessoas que está atrás de mim e que me entregou seus genes e, mais do que eles, suas jornadas de vida, para que hoje eu esteja aqui, diante de um computador, na bancada de trabalho do nosso apartamento, escrevendo para você?

           

Algumas diriam que devemos gratidão a nossos ancestrais. Outro dirá respeito e reconhecimento. Alguém ainda diria amor, consideração e outra diz honra.


Tenho experimentado, nos últimos tempos da minha história recente, muitas aventuras humanas, que têm ampliado minha percepção de mundo e revelado para mim coisas de mim que eu nem suspeitava ter ou ser.


Destaco apenas duas, para não cansar o juízo de quem quer ler isto: a morte do meu pai e a velhice da minha mãe. Tanto a morte quanto a velhice, se as localizarmos no fio da vida, já estão nos domínios de Átropos e bem distantes das mãos de Cloto. Mesmo assim, envelhecer e morrer são eventos de naturezas muito distintas e, por vezes, com exigências paradoxais para aqueles que acompanham quem morre ou quem envelhece.

           

Meu pai ficou internado quase dois meses antes que a tesoura da moira cortasse o fio da sua vida. Nesse período, experimentei raiva dele, por estar ali; tristeza, por achar que ele não sairia vivo do hospital; arrependimento, por não ter parado o que estava fazendo para atender suas ligações; culpa, por ter sido tão dura com ele em seus momentos de reclamação da vida; vazio, quando percebi que sua partida levaria consigo trechos da minha história, que só ele sabia.


E talvez mais importante do que tudo isso, senti amor por ele e admiração por sua jornada, porque com o pouco que recebeu ele fez tanto. E achar isso me faz sentir honrada por carregar em mim seus genes e com eles sua história e características: nossos pés são idênticos e nos divertíamos muito com isso!

           

Agora falando da Vilanir, a velhice dela tem colocado a mim e meus irmãos, frequentemente, noutro lugar: o dos filhos que cuidam dos pais. E como ela está com 88 aninhos, mas completamente nítida, isso nos obriga a negociar o tempo todo, com ela, a tomada de decisões sobre sua vida. São médicos e consultas e orientações. Sessões de fonoaudiologia para os engasgos que passam a ser frequentes, estratagemas para beber água, que agora é um trabalho de Hércules.


Enfim. Aquilo que foi tão simples e natural, agora toma um contorno de tarefa complexa que dá muito muito trabalho para ser realizada. Com tudo isso, esperamos que Átropos não se apresse a cortar seu fio da vida e que ainda outras tantas vezes esse fio esteja do lado de cima da roda da fortuna. Veremos.

           

Sem me forçar a expressar por meus ancestrais longínquos os mesmos sentimentos que tenho por meus pais, escolhi parar na minha ancestralidade imediata. E aí me pergunto: o que eu devo a essas duas pessoas que me deram o barro de que sou feita e um lugar no mundo que chamamos de família, onde eu pude sobreviver e me desenvolver para chegar ao que sou hoje? Deixemos de lado a genética, porque com ela ninguém pode e nem adianta se achar culpado, porque ninguém é culpado pela genética que carrega, certo?


Então vamos para esse lugar no mundo que chamamos família.

           

A mim coube uma família remediada no interior do Ceará, com os mesmos problemas de tantas. Fomos estrondosamente felizes e desoladoramente tristes, desfrutamos de saúde e enfrentamos moléstias, nunca tínhamos dinheiro para tudo que queríamos, mas também nunca passamos necessidades financeiras, não tínhamos viagens de férias, nem trocávamos presentes de Natal, a não ser quando nos juntávamos em grupo maior e fazíamos o velho e bom amigo secreto.


O painho se orgulhava de ter três filhos saudáveis, inteligentes e bonitos e, aos sábados, a mãinha reforçava a higiene pessoal dos três melhorando a qualidade dos banhos tomados sozinhos durante a semana: lavava cabeças, cortava unhas, limpava ouvidos e narizes, procurava carrapatos, piolhos e outros passageiros indesejáveis. Fomos assim, quando éramos cinco.

           

Mas algumas famílias não são sequer o lugar onde o indivíduo irá sobreviver, quem dirá se constituir como pessoa viável. Há família onde a violência é quem acorda mais cedo e vai dormir mais tarde. Há famílias que surram mulheres e crianças. Há famílias em que a comunicação é tão violenta que melhor seria um tapa do que o peso das palavras mal ditas.


Nem precisaria lembrar que a maioria dos casos de violência sexual contra crianças é praticada por um membro da família, ou bem próximo dela; que garotos homossexuais começam apanhando do pai, em casa, antes de serem espancados na rua; que meninas experimentam a corrosão de sua autoestima, desde cedo, pelas frustrações de mães que não queriam estar ali, mas não foram capazes de outra coisa. O que esses indivíduos devem a esses ancestrais? Amor? Respeito? Consideração?

           

Não seriam o amor, o respeito, o carinho, a consideração uma construção conjunta? Uma via de duas mãos? Eu tendo a pensar que amor, respeito, essas coisas, a gente constrói junto. Portanto, se eu e meus irmãos sentimos tudo isso por nossos pais é porque eles foram capazes de nos ensinar isso.


E só tem um jeito de ensinar um ser humano a amar: amando-o primeiro. Só dá para ensinar uma criança a respeitar, respeitando-a primeiro. Mas e aí? O que os indivíduos do parágrafo anterior devem a seus pais? Há algum dever? Acredito que sim. Honra.

           

Honra é o que devemos a quem veio antes de nós. Com ou sem amor, com ou sem carinho, com ou sem respeito, devemos honra. Porque afinal de contas se eu estou viva hoje é porque fui fruto deles. E estar viva é uma dádiva. Pois só é possível mudar de vida se se estiver viva. Por isso, devo honra a quem me deu a vida.


Não vou discutir aqui os caminhos que levaram pais e mães a serem violentos ou destrutivos, mas me arrisco a dizer que os caminhos da honra são muitos e que, portanto, é possível honrar sem amar, cuidando burocraticamente de aspectos da vida dessas pessoas, ou ainda amar à distância e se resguardar daquilo que lhe faz mal, do que não lhe deixa brotar.


Porque se fato, todo corpo que tem um deserto, tem um olho de água por perto e que para ouvir basta abrir os poros, para aceitar basta oferecer*, enquanto nosso fio continuar sendo tecido pelas moiras teremos a oportunidade de exercitar a honrar e, quem sabe, curar as feridas da ancestralidade, deixando a potência da nossa natureza se manifestar e fazendo por merecer a herança humana.


*Trecho da canção: A primeira pedra de Marisa Monte, Carlinhos Brawn e Arnaldo Antunes


Anna Karenina Azevedo Martins

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