"O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar..."
(Titãs)
Se tem uma coisa que eu não faço é andar por aí distraída, esperando o acaso acontecer.
Virginiana, responsável, objetiva, racional, estou sempre prestando atenção em tudo ao meu redor. Nos meus passos, nos meus gestos e movimentos. Nos passos, gestos e movimentos dos outros. No que planejei e farei a seguir. No mapa mental que tracei para aquele dia e todos os demais que virão.
Às vezes penso, no entanto, se o fato de ser assim, não me faz perder um pouco a mágica do mundo. Não seria exatamente quando nos perdemos de nós mesmos o momento onde a mágica acontece? O exato instante em que o acaso vem fazer uma visitinha e espalhar seu pozinho de pirlimpimpim ao redor de nós?
Apesar de achar que sim, não encontrei ainda dentro de mim a fórmula para fazer isso acontecer. Ainda não encontrei o equilíbrio entre planejar, se preparar, se programar e o simplesmente se deixar levar. Gosto de estar ciente, de planejar meus passos, de ter tudo organizado. De programar o dia. Sempre tento incluir nele um momento de ócio, de libertação, quando tento perceber dentro de meu corpo o que é que ele necessita. Uma soneca? Um lanchinho? Uma distração? Mas até a pausa, para mim, é, geralmente, programada.
Mesmo sendo assim um tanto controladora, posso afirmar que o acaso já me passou a perna várias vezes e me apresentou momentos únicos que nem toda a programação do mundo conseguiria me proporcionar. Graças a Deus!
Qual a chance de você estar na cidade certa, no dia certo, no horário certo e há exatos cinco minutos de distância do show de um dos seus cantores preferidos? E descobrir isso na fila do banheiro de um bar, conversando com a pessoa que ali, como você, estava esperando na fila para fazer xixi? E não é só isso! Quais a chances de isso acontecer e você encontrar um ingresso disponível para o show, assim, de última hora, sem precisar esvaziar sua conta bancária?
Quais as chances de você estar passando na frente de uma casa à venda e encontrar, por um “acaso”, a corretora responsável por ela que, sem te conhecer ou ter combinado a visita, se dispõe a mostrar a casa, sem pressa, como se tudo tivesse sido milimetricamente combinado?
Ou de estar numa viagem e decidir andar sem destino – após dias e dias de visitas planejadas e previamente organizadas – e se deparar com o pôr do sol mais lindo e o restaurante mais delicioso?
Pois é. Quando nos distraímos de nós mesmos é que o acaso acontece.
Mas se isso é mesmo verdade, por que então deixamos tão pouco espaço nas nossas vidas para esse momento aparecer? Concordo que andar distraído pode ser extremamente perigoso e não recomendo em absoluto fazê-lo no meio de uma avenida movimentada ou tarde da noite em um ponto de ônibus. Mas fico pensando se não seria importante fazer isso com um pouco mais de frequência. Em casa, nas viagens, com a família, com os amigos. Mesmo no trabalho! Estamos tão imersos na obrigação de produzir e ser eficiente, que não nos permitimos desligar. Nem por um instante. E assim, fechamos a porta para o improvável se manifestar.
A questão é que, para nos abrirmos para tudo isso, precisamos estar muito sintonizados com o que se passa aqui dentro da gente, o que nem sempre é fácil num mundo para lá de ruidoso como esse. Precisamos estar dispostos a escutar e seguir aquela voz, aquele sussurro, aquele sopro que, sempre gentilmente, nos cutuca internamente e sugere: compra a passagem, vira nessa rua, liga para tal pessoa, segue reto, descansa um pouco, não manda esse e-mail agora. Precisamos de tempo livre para deixar a mente ou o corpo vagarem por aí sem rumo nem destino final.
Mas quem tem tempo para isso?
Uma vez mais, penso no quanto sou grata à escrita e a tudo o que ela me ensina. Não seria o escrever uma grande brincadeira que se joga em parceria com o acaso? Onde o autor somente é responsável pelas palavras ou ideias iniciais e depois, só precisa continuar, ainda que espantado, a registrar as palavras que resolvem pular na tela e se combinar umas com as outras? Onde o resultado transcende sua vontade ou intenção original e se materializa de um jeito nunca antes por ele imaginado?
Fico pensando então, em como seria minha vida se eu me entregasse a ela da mesma forma que faço com a escrita. Onde minha missão fosse apenas contribuir com uma intenção inicial e deixar que o resto se desenrolasse a revelia, a seu tempo, revelando uma linda e inesperada trama, cheia de novas combinações e sentidos. Onde eu vivesse em paz com o fato de que não sou dona nem tenho controle de nada e que só preciso persistir no meu seguir, mesmo sem ideia alguma de onde o caminho desconhecido fosse me levar. Onde eu me preocupasse somente em rezar para o acaso me proteger enquanto decidir passear – ou escrever – assim por aí, assim meio distraída.
Isabel Coutinho
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