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Inspiração



Que o papel aceita qualquer coisa, isso todos nós sabemos. Então se ver diante da folha em branco deveria ser tarefa muito fácil, não é mesmo? O papel ou tela vazia convidando sem julgamento a livre expressão de palavras, de traços, notas, ideias, pinceladas. O paraíso dos artistas! Infelizmente, não é bem assim.

 

Enquanto o papel parece estar sempre pronto, a inspiração, todavia, nem sempre está. Essa é tinhosa, difícil, rebelde. Quando a pessoa precisa dela, cadê? Ah, boa sorte para ela. Ela só aparece quando quer, não te contaram? E adora dar o ar de sua graça nas horas mais ingratas! Quando a pessoa está lavando o cabelo no chuveiro, na depilação, reunião da escola, cadeira do dentista. Quanto mais longe de um papel ou computador o sujeito estiver, maior a chance dela aparecer para dar um alozinho e deixar a criatura louca de raiva por não poder aproveitar. Pode reparar!

 

Há alguns anos, li um livro* que fala da inspiração como algo que está presente no universo, no campo ao redor de nós e que, na verdade, quando sintonizados, temos a sorte de canalizá-la.  A ideia fez sentido e, confesso, me trouxe um certo alívio. Bom saber que tenho controle sobre ela do que gostaria! No mesmo livro, a autora conta a história de um músico famoso que, enquanto dirigia seu carro, recebeu uma onda de inspiração e se viu presenteado com uma linda e inesperada melodia. Só que ele não podia parar para registrá-la! Estava dirigindo, no meio de um congestionamento! Conta que o tal músico não teve dúvidas, olhou para cima e foi tirar satisfação com o universo: “não tá vendo que agora eu tô dirigindo?” Ficou bravo mesmo, o moço. Lhe dou razão. Tenho certeza que já precisou inúmeras vezes do sopro encantado da bendita e, NADA. Brincadeira mesmo sem graça essa de aparecer na hora que se está indisponível.

 

É engraçado também quando ela aparece no meio do sono. Você acorda e plim! ideias começam a jorrar da sua cabeça. Já aconteceu com vocês? Comigo, já. Aí a pessoa, depois de lutar muito e jurar para si mesma que vai lembrar de tudinho, tintin por tintin no dia seguinte, levanta torta de sono e começa a apalpar o criado mudo, rezando para ter deixado um caderninho ali mesmo - de preferência, com a caneta dentro - para fazer as anotações. Por mais que tente não fazer barulho, a movimentação acaba acordando o companheiro que dorme ao lado. Este, assustado com a cena do outro ser insone e descabelado escrevendo desenfreadamente, pergunta confuso: mas o que é que você está fazendo? São três horas da manhã! Nada, nada, só anotando umas coisinhas. Dorme, benzinho. 

 

Aposto que se a inspiração fosse uma pessoa, nessa hora, estaria gargalhando da cara da criatura e sugerindo “Fala, fofa. Fala para ele que você acordou com uma onda de inspiração bem no meio da noite e que você agora está escrevendo mais do que nas três horas que passou na frente do computador hoje a tarde!” Senso de humor peculiar o dela.

 

Penso que seria muito bom se tivéssemos um botão liga e desliga inspiração. A pessoa senta para escrever / pintar / desenhar/ compor, liga o botão e manda bala! Quando cansa, desliga e segue o dia despreocupadamente cuidando dos outros afazeres de vida sem se preocupar com a inspiração se intrometendo em horas indesejadas.

 

Mas por que mesmo que eu estou escrevendo tudo isso? Ah, claro! Para contar para vocês que a minha única tarefa do dia era escrever algo relacionado com a palavra CONSELHO. E aí, o que aconteceu?

 

Cri – cri - cri.

 

A inspiração não apareceu.

 

Eu, que já esperava por isso, dessa vez, fui mais esperta que ela e resolvi driblar o seu joguinho. Rá! Sentei-me despreocupada na frente da tela do computador e, como quem não queria nada fui escrevendo uma linha, outra e mais outra, sem esperar muito, só assim como quem está brincando. E, de repente, não é que ela começa a aparecer e dar uns pitaquinhos aqui e acolá?  A prova disso? Esse texto aqui que vocês estão lendo. Um texto que, por sinal, está sendo bem injusto com ela.

 

A verdade é que a inspiração sempre acaba aparecendo. Pode demorar um pouquinho, fluir com a velocidade de uma conta-gotas e tal, mas ela sempre se solidariza e sopra seu pozinho para ajudar a construir as ideias mais difíceis, expressar as emoções mais intensas, descrever os momentos mais marcantes. Mas é preciso fazer uma espécie de acordo com ela: se esvaziar de si para criar um espaço para ela. Já não dizia a lei da física que “dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo”? Pois é. É mais ou menos isso que acontece. Para ela entrar, algo de nós tem que sair.

 

Confesso que sair de cena é difícil. Ainda mais quando falamos de criar algo que é tão visceral e pessoal. Mas parece que essas são as regras do jogo e cabe a nós aceitar ou não. Revisito então meus pensamentos e declaro que, na relação entre nós e a inspiração, somos nós os tinhosos, difíceis, rebeldes. E não a inspiração. Ela está sempre disponível para nós. Nós que nem sempre estamos disponíveis para ela...

 

 Isabel Coutinho


 

*o livro a que me refiro chama-se “Grande Magia – Vida Criativa Sem Medo”, da autora Elizabeth Gilbert, publicado pela editora Objetiva.  

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