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O QUE OS OLHOS NÃO VEEM O UNIVERSO SE ENCARREGA



As crianças nos ensinam muito e foi com elas que aprendi a magia de olhar para o céu.


É fato que desde garoto tenho uma verdadeira paixão por identificar formas imaginárias olhando para as nuvens.


Já fui capaz de enxergar carros, dinossauros, pássaros, uma tartaruga, uma orelha, e tantos outros objetos que prefiro guardar comigo a ser julgado como louco se revelado fosse.


Naquele dia, o céu estava limpo, sem nuvens, e a temperatura, amena.


O centro de São Paulo, definitivamente, não é o lugar ideal para se olhar para o céu, seja por conta dos seus arranha-céus que limitam a visão, seja pela insegurança de parar e se abstrair por alguns instantes. Seja porque às vezes não vemos nada além de poluição.


Então, me contive durante todo o trajeto de caminhada ao restaurante.


Mas, à medida que passamos pela porta toda rabiscada do antigo edifício e subimos os degraus à espera do elevador com destino ao rooftop daquele prédio “retrofitado” –atualmente ocupado pelo delicioso restaurante Cora –, toda esta experiência íntima despertou minha curiosidade em admirar as nuvens.


Mais perto do céu, mais perto das nuvens, mais perto da magia.


A mesma magia que, antes de subir, vale mencionar, me fez dar uma “espiada” na livraria Gato Sem Rabo, na calçada do mesmo edifício, e fiquei interessado em conhecer esse que é um ponto de venda com muita personalidade.


É uma livraria independente e que oferece um acervo composto por livros escritos por mulheres, pessoas trans e travestis.


Chegando ao restaurante, entre porções de quiabo com pasta de castanhas e zátar, abóboras assadas e arroz com lula, tivemos um discreto e controlado desentendimento.


Algo tão comum entre nós que, honestamente, nem me lembro o motivo ao certo. A única certeza é que aquele clima romântico havia se esvaído.


Sentados à mesa, notei uma primeira nuvem surgindo e sutis tons de cinza começaram a tingir o céu.


Confesso não ter dado a costumeira atenção na busca por uma forma geométrica ou algo do gênero, afinal a cosmopolita atmosfera do restaurante, a comida e o vinho roubavam a minha atenção de forma plena e satisfaziam meus sentidos.


Por outro lado, aquele clima ainda adverso por conta das palavras desarmoniosas que trocamos me deixou pouco entusiasmado.


Quando terminamos a refeição, estando naquele cenário e de frente para o icônico “Minhocão”, nos debruçamos sobre o parapeito do prédio.


O garçom despretensiosamente apareceu e sugeriu uma foto do casal, especialmente por conta do lindo corpo que exibia aquela mãe grávida de seis meses. Nos abraçamos e o registro foi feito!


Algum tempo depois, talvez pouco mais de dois anos após nossa única visita ao restaurante Cora, nossa família havia crescido. Além da “filha de quatro patas”, o nosso menino que faria seu segundo aniversário estava entusiasmado com a sua festa.


Ao contrário do pai, ele já demonstrava sinais de ansiedade e alegria por conta da comemoração. Ele contava os dias, acompanhava cada detalhe do preparo do seu aniversário e participava de decisões como a escolha do “bolo de cenoura com chocolate por fora” – como ele se referia.


Acho que ele também tinha certa magia em abstrair.


Eis que, assistindo à prévia do vídeo de retrospectiva da sua curta vida, que seria exibido no dia do seu aniversário, um grito desafinado assusta e surpreende a todos na sala de TV:


– Um coração!


E, com o dedo apontado para a tela, aquela doce criatura de apenas dois anos de idade identifica o símbolo do amor que existe entre nós nas nuvens do céu do centro de São Paulo, naquela foto que, para nós, era mais uma lembrança do “nosso amor”.


Que vivam a ingenuidade e a pureza das crianças!


Que a magia de olhar para o céu seja também a magia de olhar para dentro.

Música sugerida: Era uma vez, Kell Smith


Vinho sugerido: Cara Sucia Blanco Legítimo


Fernando Palauso

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